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A mágica e os milhões dos grandes escritórios de advocacia

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Como atuam os advogados com conexões nos tribunais superiores do país
Por Wilson Lima / Revista Oeste

Com a terceira Constituição mais extensa do mundo, quase 365 mil normas tributárias e uma lei trabalhista com 922 artigos, mil jurisprudências e mais de 500 súmulas, o Brasil é o território da insegurança jurídica. Não por acaso o país registra a terceira maior população de advogados do mundo. Com 571 mil profissionais, perde apenas para Estados Unidos e Índia — embora proporcionalmente tenha mais advogados per capita do que os EUA, um para cada 372 habitantes. Portanto, haverá sempre perto de sua casa ou de sua empresa um escritório de advocacia pronto para cuidar de suas demandas. Há, entretanto, escritórios e ESCRITÓRIOS. Esses com letras maiúsculas representam grandes clientes, corporações, multinacionais, bancos. Em São Paulo, as famílias que controlam os escritórios de primeira linha têm como meta faturar R$ 1 bilhão por ano. E há casos em que a meta é cumprida. Ações, liminares, medidas cautelares e habeas corpus que tramitam nos tribunais superiores normalmente rendem honorários robustos.

Mas a Justiça brasileira, assim como a política, é feita de detalhes. E são os detalhes que fazem diferença entre uma causa ganha e uma causa perdida. E um detalhe decisivo pode manifestar-se pela ação de um advogado que tenha bom trânsito nos tribunais. Principalmente nos superiores — Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou Tribunal Superior do Trabalho (TST). Um bom relacionamento pode ser determinante.

É compreensível, portanto, que clientes com recursos busquem escritórios que dispõem de profissionais com muita experiência e, eventualmente, conexões importantes. Como ocorre em todas as áreas, da medicina ao jornalismo, da tecnologia ao design de interiores, na advocacia também são considerados os relacionamentos pessoais. Na prática, podem nem fazer diferença em certos casos. Para os clientes, no entanto, fica a imagem de que determinado escritório é especial em razão de seus contatos. E esse detalhe pode livrar um figurão do xadrez ou evitar que um banco pague indenizações bilionárias.

A advogada do traficante André do Rap é uma ex-estagiária do gabinete do ministro do STF Marco Aurélio de Mello. O escritório que representa Eike Batista tem como uma das associadas a mulher do ministro Gilmar Mendes. E o escritório do sobrinho do ministro Luís Roberto Barroso, o BFBM — Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados, tem em sua lista de clientes o Banco Itaú. O jurista Eugênio Aragão, que durante dois meses foi ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, hoje atende ao PT e seu escritório recebeu do Fundo Partidário em 2020 o valor de R$ 1.439.994,63.

Grandes escritórios têm entre seus sócios ex-ministros do Supremo como Ayres Britto, Cezar Peluso e Eros Grau. O ex-ministro da Justiça Sergio Moro tornou-se diretor da consultoria norte-americana Alvarez & Marsal. Dará pareceres relacionados a assuntos de compliance, a relação de instituições privadas com entes públicos. Normalmente, nesses casos, os honorários têm uma boa quantidade de dígitos. Considerado um dos juristas mais importantes do país, Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça de 2003 a 2007, no governo Lula, deixou para seus herdeiros R$ 393 milhões. Isso em 2015. Em valores atualizados pelo Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M) da Fundação Getúlio Vargas chega-se a R$ 611 milhões.

Dos onze ministros do STF, sete têm algum parente atuando na advocacia com casos em tramitação na Suprema Corte brasileira. No STJ, a estimativa é que pelo menos dez ministros tenham parentes diretamente envolvidos em ações que o tribunal julgará. Contudo, é incerto o número de ações em que escritórios de grande porte disponham de acesso especial a cortes superiores. Apenas no caso do ex-ministro Ayres Britto, seu escritório cuida de 153 processos no STF. Destes, Britto gerencia pessoalmente 50.

Em Brasília, é conhecido o ditado “quando a casa cai chama o Kakay”

Entre os casos mais emblemáticos está o que envolveu André do Rap. Ele foi beneficiado por uma interpretação que o ministro Marco Aurélio Mello fez do artigo 316 do Código de Processo Penal, que determina a revisão da prisão preventiva a cada 90 dias. Há outro entendimento acerca do artigo, o de que revisão não implica soltura automática vencido o prazo de três meses. Depois da crise que se estabeleceu com a fuga do bandido, o caso foi parar no plenário do Supremo e gerou a primeira rusga entre os ministros na gestão de Luiz Fux à frente do tribunal.

O ministro Marco Aurélio Mello irritou-se quando questionado sobre as ligações com a advogada Ana Luísa Gonçalves Rocha, sócia de Eduardo Ubaldo Barbosa no escritório Ubaldo Barbosa Advogados. Mello desligou o telefone durante uma entrevista e não quis mais saber do assunto. Classificou de irresponsável a suposição de que ele teria alguma ligação com o escritório sediado em Brasília que representa o traficante. Há outros 29 processos em tramitação no STF sob responsabilidade de Ana Luísa e Eduardo Ubaldo — sem contar outros advogados associados ao escritório.

Um caso frequentemente citado como ilustrativo é o que diz respeito a uma ação do Itaú que solicitava a exclusão dos impostos ICMS e ISS do cálculo do PIS/Cofins, o que reduziria a dívida do banco com a União. A ação estava no gabinete do ministro Luís Roberto Barroso. E o Itaú foi cliente do BFBM — Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados, constituído em 2013 como sucessor do escritório Luís Roberto Barroso & Associados, empresa desfeita quando Barroso assumiu o cargo no STF.

Barroso concedeu uma decisão favorável ao Itaú, um recurso extraordinário. A União recorreu no próprio STF e coube novamente a Barroso a apreciação do assunto. Somente depois de questionado pela imprensa sobre sua independência no que dizia respeito ao caso, o ministro determinou a redistribuição da ação. “O Gabinete recebe a média de 7 mil processos por ano. Nunca, porém, atuei em casos dessas empresas levados ao Plenário ou à Turma. Só houve atuação do Gabinete em raríssimos casos”, explicou Barroso.

Em outro caso bilionário envolvendo o banco, o advogado Rafael Barroso Fontelles, sobrinho do ministro Barroso, teve atuação decisiva. Fontelles apresentou uma reclamação disciplinar ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para contestar uma sentença da juíza Rosana Lúcia de Canelas Bastos, da 1ª Vara Cível e Empresarial da Comarca de Belém, no Pará. Rosana Bastos havia julgado procedente uma ação movida contra o Itaú por um acionista minoritário. Fontelles argumentou que a juíza não fora imparcial. O ministro Luiz Fux, na condição de presidente do CNJ, suspendeu a decisão da juíza de Belém e determinou o desbloqueio de R$ 2 bilhões do Itaú.

Recorrer ao CNJ para derrubar decisões judiciais não é um procedimento ortodoxo. É como se o CNJ pudesse atuar como uma quarta instância da Justiça brasileira. Para efeito de comparação, a reclamação disciplinar contra o procurador Deltan Dallagnol, que tramitou no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) — e acabou arquivada —, não tinha como gerar a revisão de sentenças da Lava Jato. Dallagnol, acusado de ter agido de modo parcial contra o ex-presidente Lula, foi inocentado. Mas, caso tivesse sido condenado, a sanção do CNMP não anularia sentenças ou o trabalho pretérito da Lava Jato.

Ligações entre advogados e ministros ou parentes de ministros e desembargadores ocorrem também em outros tribunais. Durante o período em que o ex-presidente do STJ João Otávio de Noronha comandou o tribunal, por exemplo, seus dois filhos, Anna Carolina Noronha, de 34 anos, e Otávio Noronha, 36, passaram a atuar mais fortemente na área criminal, considerada a mais rentável em Brasília. Antes, eles focavam as áreas cível e pública.

Embora grife e sobrenome façam diferença, não são propriamente garantia de sucesso. No julgamento do mensalão, em 2012, a primeira absolvição, a do empresário Carlos Alberto Quaglia, foi conduzida por um defensor público, Haman Córdova.

Nem mesmo o advogado-celebridade Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay — aquele que tem salvo-conduto para visitar a Suprema Corte vestindo bermudas —, obtém sucesso em todas as causas. Sua fama entre a classe política tem mais a ver com a disposição de pegar qualquer caso, por mais complexo e embaraçoso que seja, do que com garantia de vitória. Em Brasília, é conhecido o ditado “quando a casa cai chama o Kakay”. Em 2020, Kakay impetrou cinco habeas corpus no Supremo. Perdeu dois. Os outros estão em tramitação.

Em outubro, por exemplo, a Segunda Turma do STF condenou por corrupção e lavagem de dinheiro o ex-senador Valdir Raupp (MDB-RO) a sete anos e seis meses de prisão, mais pagamento de 225 salários mínimos, reparação de danos morais e materiais da ordem de R$ 1 milhão e interdição para o exercício do cargo e de funções públicas por 15 anos. A ação penal resultante da Operação Lava Jato tramitava na Corte desde 2017 e diz respeito a propinas que somam R$ 500 mil pagas pela empreiteira Queiroz Galvão. Quem era o advogado? Kakay.

De todo modo, os grandes e famosos escritórios têm, indiscutivelmente, uma vantagem competitiva em relação aos demais. Embora não garantam milagres, sua atuação demonstra que a Justiça brasileira não é assim tão cega.

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