MEI vira mais uma bomba previdenciária

Estadão
Criado no final de 2008 com o objetivo de ampliar a formalização de pequenos empreendedores e trabalhadores autônomos, o contrato de Microempreendedor Individual (MEI), popularmente conhecido como “pejotização”, deve gerar um déficit de R$ 1,9 trilhão, nas próximas sete décadas, no já combalido Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
Essa é a estimativa do economista Rogério Nagamine Costanzi, que em análise detalhada para o Observatório de Política Fiscal da Fundação Getulio Vargas (FGV) esmiúça por que o programa, por mais bem intencionado que seja, agrava o já tenebroso desequilíbrio financeiro da Previdência e carece de reformulação.
Como explica Costanzi, o que começou mal conseguiu ser piorado com o tempo. Num primeiro momento, bastava uma contribuição de 11% do salário mínimo e contribuições simbólicas para ICMS (R$ 1) e ISS (R$ 5) para que o MEI tivesse direito a benefícios tais como aposentadoria por idade, invalidez ou incapacidade permanente, pensão por morte, auxílio-doença (incapacidade temporária) e salário-maternidade. Contudo, uma medida provisória posteriormente convertida na Lei 12.470/2011 reduziu a já baixa alíquota de contribuição previdenciária para 5% do salário mínimo.
Na prática, criou-se todo um contingente de potenciais beneficiários, sem que houvesse correspondente aumento de receitas. O número de trabalhadores inscritos no programa saltou de 44 mil, no final de 2009, para cerca de 16,3 milhões no final de 2024, enquanto a participação do MEI no regime geral da Previdência subiu de 1,6% em 2011 para quase 12% em 2023.
Não bastasse o crescimento acelerado de beneficiários que contribuem muito pouco para desfrutar de uma série de direitos, Costanzi também chama a atenção para a forte inadimplência previdenciária dos “pejotizados”. Em 2023, apenas um em cada três MEIs contribuía para a Previdência.
Insustentável como está, o MEI pode, mais uma vez, mudar para pior. Debate-se no Congresso a possibilidade de se ampliar o teto do MEI dos atuais R$ 81 mil de faturamento anual para R$ 130 mil. O ministro do Empreendedorismo, Márcio França, entende que o teto atual está defasado e precisa ser atualizado.
Em tese, a ampliação do teto viria acompanhada de uma tabela progressiva de contribuição para a Previdência. Mas é difícil acreditar que Executivo e Legislativo cheguem a bom termo em relação a isso, não só porque vivem às turras quando se trata de responsabilidade fiscal, como porque já há no Congresso quem defenda elevar o teto do MEI para além de R$ 130 mil.
Não bastasse o efeito devastador sobre o sistema previdenciário, o MEI também está muito longe de promover aquilo para o que foi concebido: a formalização do trabalhador de baixa renda.
Ao cruzar dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2023 com o total de trabalhadores por conta própria com registro no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), Costanzi estimou que “82,2% dos MEIs estavam entre os 50% mais ricos da população, considerando a renda domiciliar per capita, e apenas 17,8% estavam entre os 50% mais pobres”.
Trata-se de uma séria distorção de uma política pública que deveria oferecer proteção social àqueles que historicamente não contam com ela, caso de trabalhadores como vendedores ambulantes.
Na realidade, porém, o perfil do MEI é muito similar ao de um profissional com carteira assinada (CLT) com ensino médio ou superior completo e que, justamente por isso, não deveria ser objeto de políticas de proteção social quase não contributivas, como corretamente argumenta Costanzi.
Tudo isso deveria estar no radar tanto do Executivo, agora tão cioso do abismo entre ricos e pobres, quanto do Legislativo, que deveria resistir a lobbies que podem ampliar ainda mais os problemas do MEI.
Tal como está, o MEI é mais um exemplo de política pública que não cumpre, a contento, o objetivo de incluir quem realmente precisa de proteção social e, além disso, é estruturalmente inviável do ponto de vista previdenciário. Posto de outra forma, é uma bomba-relógio de amplo alcance.